Curso: Publicidade e Propaganda
Turma: 5º e 6º Semestres
Disciplina: Tópicos Avançados em P&P
Data: 06/03/2015
Profª Talita Godoy
INTRODUÇÃO
O artigo
abaixo foi escrito em 2007, por José Edson Ferreira Lima, então estudante de
Letras e professor de Língua Portuguesa, no Piauí. O autor apresenta uma análise
da letra da música “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho, que foi citada em sala de aula ao falarmos sobre a alienação provocada pelos
meios de comunicação de massa. Ao mesmo tempo em que a indústria cultural produz
arte, entretenimento enriquecedor e seleto, ela também está sob
o domínio do capitalismo que chega a fazer tanto mal para a chamada massa
brasileira. Ou mais, talvez ela seja o mais poderoso instrumento de poder do capitalismo! Como financiadores desse
movimento capitalista, é importante saber com o que estamos lidando e até que
ponto queremos ir, ao passo em que é preciso ter plena ciência do tanto que nos
deixamos dominar pelos meios de massa, a ponto de não sermos como gados
marcados. Qual a diferença? O artigo abaixo procura responder algumas dessas
questões. O link para busca do original e consulta de artigos semelhantes,
encontra-se no final desta postagem.
A DENÚNCIA SOCIAL NA MÚSICA
"ADMIRÁVEL GADO NOVO" DE ZÉ RAMALHO: OS MECANISMOS MASSIVOS DE
ALIENAÇÃO
Admirável Gado Novo
Zé Ramalho
Vocês que fazem parte
dessa massa
Que passa nos projetos
do futuro,
É duro tanto ter que
caminhar
E dar muito mais do
que receber,
E ter que demonstrar
sua coragem
À margem do que possa
parecer,
E ver que toda essa
engrenagem
Já sente a ferrugem
lhe comer.
Ê, vida de gado...Povo
marcado,Povo feliz...
Lá fora faz um tempo
confortável,
A vigilância cuida do
normal;
Os automóveis ouvem a
notícia,
Os homens a publicam
no jornal,
E correm através da
madrugada,
A única velhice que
chegou;
Demoram-se na beira da
estrada
E passam a contar o
que sobrou.
Ê, vida de gado...Povo
marcado,Povo feliz...
O povo foge da
ignorância,
Apesar de viver tão
perto dela,
E sonham com melhores
tempos idos,
Contemplam essa vida
numa cela,
E esperam nova
possibilidade
De verem esse mundo se
acabar;
A Arca de Noé, o
dirigível
Não voam nem se podem
flutuar.
Ê, vida de gado...Povo
marcado,Povo feliz...
Zé Ramalho é um músico intenso. Sua
poesia é profundamente nordestina e, ao mesmo tempo universal, pois gira em
torno de questões que intrigam o ser humano de uma forma geral. Sua música está
recheada de citações às suas próprias experiências pessoais: movimento hippie,
a batalha pelo pão, a necessidade de arranjar dinheiro, a procura de uma
experiência mística, a tristeza de um amor impossível, etc. Com letras
impactantes, a maioria delas de caráter místico e social, constituiu-se num
cantor eclético atingindo várias gerações. "Admirável Gado Novo" é um
dos seus maiores sucessos.
Passaremos a analisar essa música de Zé
Ramalho, composta no final dos anos 70, período da Ditadura Militar no Brasil,
sob a ótica da Crítica Literária Marxista. Essa linha crítica "analisa a
Literatura em termos das condições históricas que a produzem", envolvendo
a luta de classes e tendo como objetivo a compreensão das ideologias presentes
em qualquer obra literária. De acordo com Marx, o aspecto material da sociedade
condiciona o social, o político e, o que mais nos interessa, o intelectual e
artístico em geral, ou seja, as relações sociais de uma forma geral dependem
necessariamente das relações de produção. Dessa forma ele define o conceito de
infra-estrutura como as relações e forças de produção que são sustentadas, isto
é, legitimadas por uma superestrutura "que assegura que a situação em que
uma classe social tem poder sobre as outras seja vista pela maioria dos membros
da sociedade como natural ou nem mesmo seja vista".
Para o Marxismo, a arte, e por
conseqüência a Literatura, faz parte dessa superestrutura. No entanto, a
Literatura, apesar de estar contida nesse aparato ou Ideologia que reflete os
interesses da classe dominante, não é um "simples reflexo passivo da base
econômica". Isso implica dizer que a Arte Literária está contida na
Ideologia, mas não está presa a ela, pois consegue distanciar-se ou até ir de
encontro à visão da classe dominante, como é o caso da obra em questão. A
contracultura e as vanguardas são exemplos da força crítica que tem a Arte
Literária, bem como do seu poder de denúncia social e de exposição e
mimetização da realidade. Terry Eagleton assim se expressa sobre a arte
literária, na concepção materialista de Marx:
A teoria materialista da história nega
que a arte por si só possa mudar o curso da história, mas insiste em que ela
pode constituir um elemento ativo dessa mudança. (1978: 22).
Assim temos em "Admirável Gado
Novo" uma forte crítica social, tendo em vista que o Brasil passava por um
dos períodos mais negros da sua história. Vemos expressados nela a luta de
classes, tão discutida por Marx, e um aspecto imprescindível nesse contexto que
é a manutenção desse modelo social através da alienação das massas,
metaforizada na figura do gado.
Outrossim, Zé Ramalho compôs
"Admirável Gado Novo" numa clara referência ao romance de ficção
científica de Aldous Huxley "Admirável Mundo Novo". Escrito em 1932,
este romance descreve uma sociedade hipotética do futuro onde as pessoas são
pré-condicionadas biologicamente e condicionadas psicologicamente a viverem em
harmonia com as leis e ordens sociais sem possibilidade de contestação e senso
crítico. No entanto, nesse "futuro" criado por Aldous Huxley não há
as regras sociais, éticas ou religiosas de hoje. Qualquer dúvida de algum
habitante é dissipada com o uso de uma droga, sem efeitos colaterais chamada
"soma".
Vemos assim uma sociedade controlada,
condicionada a viver em uma ordem estabelecida através do conformismo. Outro
aspecto importante é que nesse "Mundo Novo" não há princípios morais
e éticos. O controle se dá somente através da droga "soma" que surge
como a representação dos instrumentos alienatórios da nossa sociedade, entre
eles os meios de comunicação de massa como a televisão. Não há espaço para o
questionamento, pois a "droga" elimina todas as dúvidas e continua a
direcionar, é claro, de acordo a ordem dominante. É um mundo
"admirável", pois se apresenta como modelo exemplar de perfeição e ordem,
contudo esconde as desigualdades e mazelas sociais.
Essa visão crítica transposta na obra
huxleyana reflete a preocupação do autor, que viveu a maior parte dos anos 20
na Itália fascista de Mussolini, com a liberdade individual em detrimento ao
autoritarismo tão bem retratado em sua obra-prima "Admirável Mundo
Novo". Com certeza sua estada no país europeu o impeliram
consideravelmente na composição desse livro.
Mas voltando à música em questão, já
vimos de onde se originou seu título e ideia e como ela contém diversos
elementos do pensamento marxista sobre a sociedade. Dessa feita passaremos a
detalhar alguns aspectos importantes na compreensão de sua ideologia, que como
já vimos vai de encontro à visão da classe dominante trazendo uma crítica
social que a caracteriza como uma obra que, mesmo estando na superestrutura
como diz Marx, não se propõe a legitimar a exploração de uma classe sobre as
outras.
A exploração do homem pelo homem é um
dos pontos fortes sobre o qual se fundamenta a análise marxista da sociedade. E
nesse sentido a expressão "massa" aparece como um forte indicador do
anonimato, do tratamento não individual, essencialmente coletivo que o
Capitalismo impõe aos indivíduos. Representa a necessidade da produtividade,
bem como aquilo de pouco apuro, reflexão e qualidade, dada a falta de acesso da
"massa" à educação e ao conhecimento de uma forma geral.
Essa condição massificada gera o
problema de "dar muito mais do que receber", característico do modo
de produção capitalista que faz com que o trabalhador produza muito e receba
pouco. No caso brasileiro, essa exploração se caracteriza desde o campo, com o
trabalho semi escravo, à cidade, com as altas cargas de trabalho e a constante
supressão dos direitos trabalhistas. Assim, temos o quadro lamentável da nossa
estrutura de classes. Apesar disso o autor enfatiza a coragem da
"massa", demonstrada "à margem do que possa parecer", na
manifestação de um povo que sofre com o sistema, mas não perde sua alegria.
Outra consideração importante a fazer é
a referência a "engrenagem" que "sente a ferrugem lhe
comer". Tal expressão faz uso da metáfora e refere-se tanto à
autodestruição do Capitalismo, pregada por Marx, quanto à derrocada do regime
militar que vigorava no Brasil naquele período. Segundo o pensamento marxista,
o Capitalismo carrega os germes de sua própria destruição, e seria suplantado
pelo Socialismo onde os trabalhadores formariam uma sociedade baseada na
propriedade coletiva dos meios de produção, pois, propõe a visão marxista, que
todo sistema econômico traz no seu embrião as contradições que irão destruí-lo
por meio da luta de classes.
Uma outra faceta digna de maior
discussão é a metáfora do gado. Afinal, que semelhanças podemos depreender,
pela ideologia do compositor, entre o "povo marcado" e o gado? De
fato não haveria um ser melhor para representar a submissão e o conformismo do
que o gado, que se deixa ordenhar, direcionar e guiar pelos seus
"donos". A condição de manipulação e exploração a que se submete este
animal ocorre desde a vida até a morte, na extração da carne para a alimentação
humana.
A condição da classe dominada é
semelhante, pois o aumento do lucro dos donos dos meios de produção é
proporcional a degradação do trabalhador que quanto mais trabalha menos recebe.
Além disso, existem mecanismos de alienação e direcionamento das massas para
que essa situação de exploração não seja questionada ou sequer entendida. Tais
mecanismos se constituem como importante instrumento da ordem estabelecida e
favorecem àqueles que detêm o poder, pois onde não há contestação ou cobrança,
a facilidade para o auto favorecimento, a corrupção e a impunidade é muito
maior. A consequência disso é o agravamento da desigualdade social e de todos
os demais problemas sociais. Antônio Gramsci define a alienação na ótica
marxista dessa forma:
O homem, através da alienação torna-se
estranho a ele mesmo; não se reconhece a si mesmo; o trabalho o tornou
estranho; aquilo que produz lhe é estranho; a atividade tornou-se massificante,
penosa, desgostosa por que ela tornou-se exclusivamente um meio de subsistência
(2005: 15).
Temos uma massa que é manipulada ao bel
prazer das grandes mídias, enquanto é guiada a caminhos que desconhece
totalmente. Sob a justificativa de fugir dos problemas, assistindo a programas
de baixa qualidade ou simplesmente recebendo sem questionar o que lhes é
informado, acaba fugindo da realidade e adentrando num preocupante estado de
alienação e descomprometimento social.
Outrossim, se levarmos em consideração
a história do Brasil iremos observar que boa parte das decisões mais
importantes do país (como a Independência e a Proclamação da República, por
exemplo) não tiveram nenhuma participação das camadas mais pobres da sociedade,
que ficaram à margem de todos esses acontecimentos.
A antiga tática romana do "Pão e
Circo" é reinventada atualmente, porém mantendo o seu princípio de
alienação através do binômio alimento/entretenimento. Os programas
assistencialistas da atualidade, se trazem alguma ajuda, acarretam um enorme
conformismo, transformando-se até mesmo em instrumento de promoção política.
Aliado a isso nos deparamos com a mídia televisiva e fonográfica que, a
pretexto de entreter, acaba por maquiar, esconder ou até deturpar a realidade,
usando como instrumento a massificação dos seus produtos, onde a qualidade
quase sempre é sacrificada em nome do rendimento financeiro. No caso da TV,
encontramos um sem número de programas que em busca da audiência se prestam a
expor exaustivamente a nova fórmula do IBOPE: Sexo e violência. Dessa forma, salvo
raras e honrosas exceções, cumprem a função de componentes da superestrutura,
dando um suporte imprescindível à manutenção da ordem estabelecida.
Levando em conta o contexto histórico
em que se insere a música servi- nos lembrar que o Brasil vivia o auge da
Ditadura Militar, período negro da nossa história em que milhares de
intelectuais e oposicionistas foram perseguidos, mortos e exilados. Apesar
disso, no início da década de 70 o país estava em êxtase devido à conquista da
Copa do Mundo, fato amplamente utilizado como propaganda do Governo Militar de
Garrastazu Médici. Acresce-se a isso o "Milagre Econômico",
proporcionado pela invasão das multinacionais ao Brasil, e a forte propaganda
do regime, levando a "massa" ao entorpecimento quase total.
É justamente aos donos do poder que
encontramos fortes críticas, pois é para eles que "lá fora faz um tempo
confortável", procurando cuidar do normal e manter a "ordem" das
coisas. Em relação a isso, o autor faz uma menção simbólica à perseguição aos
opositores do regime e a forma como esse sistema era mantido com o
"gado" à margem da realidade da situação. É utilizando a arma do
simbolismo, da metáfora, da duplicidade de sentido que Zé Ramalho empreende sua
crítica a esse estado de coisas e aos que mantêm essa situação.
Essa condição de alienação e
entorpecimento vivida pelo povo faz com que ele "contemple essa vida numa
cela". Essa prisão nada mais é do que a ignorância, o assujeitamento, o
conformismo que impossibilitam a visão crítica e transformadora da sociedade.
Preso ao sistema e dirigido por vontades alheias, exatamente como o rebanho no
curral.
No fim da música temos uma menção à
religião, esta é caracterizada como uma fuga empreendida pelo povo em face dos
problemas que vivencia: "E esperam nova possibilidade/ De verem esse mundo
se acabar; / A arca de Noé, o dirigível...". Essa concepção sobre religião
demonstrada pelo compositor assemelha-se ao pensamento marxista, pois na visão
de Marx a religião é uma droga porque apazigua os ânimos do explorado impedindo-o
de reagir à situação em que se encontra ao aceitá-la como natural. O próprio
Marx assim se expressa sobre a religião:
O sofrimento religioso é, a um único e
mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento
real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem
coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo (1844: 5).
Diante de tudo o que foi exposto
podemos dizer que, na tentativa de compreender sob a ótica da Crítica Marxista
a ideologia da música "Admirável Gado Novo", constatamos que ela
apresenta diversos aspectos do pensamento de Marx sobre a sociedade tais como a
luta de classes, a exploração do homem pelo homem, a alienação e a religião.
Além disso, observamos que existem na mesma obra elementos de crítica ao regime
ditatorial do período em que ela foi composta. Entretanto, essa crítica
transcende o contexto histórico do autor e chega ao Universalismo por atacar
também o sistema capitalista. Enfim, é uma obra rica, de densidade social muito
forte e que serve como alerta para que o "povo feliz" e
"marcado" deixe de ter uma "vida de gado"
Fonte:
http://www.webartigos.com/artigos/a-denuncia-social-na-musica-quot-admiravel-gado-novo-quot-de-ze-ramalho-os-mecanismos-massivos-de-alienacao/2684/
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